quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Aborto: dois anos depois

Pudesse eu votar há exactamente dois anos, e teria votado Não. Hoje, mais convictamente ainda o faria. Por questões de forma e de conteúdo.
1. Para mim, a regra é clara: aborto nunca! Como para qualquer regra, há excepções. Que excepções deverão então existir? Situações absolutamente graves a ponto de... serem justamente excepções! Ou seja: violação, grave deformação do feto ou risco de vida da mulher. Ponto!
2. A linha de pensamento vigente é a de que a mulher está no seu direito de dispôr do seu corpo. A mulher é dona do seu corpo. Acho isso tudo muito bem... mas pergunto: o que é que isso tem que ver com a questão do aborto? A criança é porventura algum órgão extra de carácter temporário e que ao fim de 9 meses é expelido do organismo da mulher? O feto tem um código genético diferente, é uma pessoa diferente, é algo distinto da mãe! Custa-me que nem isto seja consensual: o feto é uma criança que está dentro da barriga da mãe, e não uma parte da barriga da mãe!
3. Este tempo da nova lei do aborto tem deixado claro que, infelizmente, o aborto hoje é um método contraceptivo. É uma pílula do dia seguinte. E é-o por via da mentalidade de hoje – o álcool ou "a idade" são justificações comummente válidas para ter relações sexuais sem métodos contraceptivos. "Ah, foi do momento!", "Ah, na altura não dava!", "Ah, no calor do momento não nos lembrámos!"... E como são novinhos, têm a escola para acabar, é lugar comum considerar-se não que se vai tirar uma vida, mas sim que se vai garantir dois futuros brilhantes e cheios de sucesso (ou não, mas para o caso é irrelevante…). Conclusão: estranhamente (ou não), o aborto não é posto em função da criança! Numa sociedade que se afirma como querendo defender os mais fracos, os mais indefesos, etc. e tal, a pessoa mais vulnerável neste processo é aquela que por força da lei e da vontade popular é remetida para segundo plano!
4. Querem fazer sexo? À vontade! Mas meus amigos: se se consideram suficientemente maduros para terem relações sexuais, serão também maduros para saberem que há responsabilidades. Máxima liberdade, máxima responsabilidade!
5. Esta lei seria viável (e, ainda assim, dela discordaria por uma questão de princípio mas não de consequências práticas) numa sociedade em que as decisões fossem sempre iluminadas pelo bom senso. Mas a própria prática nega isso mesmo, portanto, ainda que reconheça que a anterior lei não fosse perfeita, parece-me que era claramente preferível à actual.
6. Dizia o Sim que era chocante apelidar de criminosa uma mulher que abortasse fora das circunstâncias previstas anteriormente na lei. E votar Sim não foi dizer que serão criminosas todas aquelas que abortarem depois das 10 semanas, como de resto recentemente aconteceu numa clínica ilegal?
7. Realizou-se este referendo devido a preocupações sociais. Ora, se a opção da despenalização do aborto não visa simplesmente recorrer a um meio mais facilitista, pergunto: que tem o Estado feito, p.e., pelas adolescentes grávidas que tentam não abortar? É que na verdade já desde 98 que os movimentos pelo Não andam em trabalho de campo, no dia-a-dia, em associações que acolhem crianças ou que apoiam jovens grávidas, mas ao Sim só vejo mexer-se em 98 e em 2007 para organizar campanhas.
8. Importa ainda enquadrar no tempo a realização do referendo: o Governo dito socialista, que na sua governação estava a ser tudo menos socialista, tinha de satisfazer os desejos da esquerda. Este referendo para mim - e pela atenção que tem sido dada (ou não) ao aborto desde então - não foi mais do que um rebuçado que Sócrates deu ao eleitorado da esquerda descontente com o seu Governo. Ou seja: fazerem-me de parvo, não, obrigado!

4 comentários:

ASL disse...

Nota: peço desculpa àqueles que se queixam do tamanho de alguns dos meus posts, mas como compreenderão há assuntos em que, por mais resumidos que procuremos ser, é sempre complicado não nos extendermos para além do costume! :)

Tiago disse...

Este apanhado sobre o assunto está tão completo e capaz que tenho de voltar com mais tempo e pensar melhor nele. Mas consigo concordar com esta linha geral e, com o que não concordo à partida, tal é a justificação e verdade que se sente na explicação, sou levado a concordar e naturalmente respeito na íntegra.
Nestes temas, e com este envolvimento sustentado e portanto compreensivelmente (e até desejavelmente) mais extenso do que o normal, é que demonstras a tua notável capacidade de análise.

Grande Abraço António!
Tiago

Leonor disse...

Quem é que se queixou?? Eu gosto dos teus posts grandes desde que sejam interessantes, que é o caso.
Quanto a este post, decerto não menos interessante, concordo com tudo menos com a excepção em caso de violação. Tenho dúvidas relativamente à excepção em caso de grave deformação do feto… é que eu penso que só é válido o aborto enquanto se pode reconduzir à legítima defesa da mãe. Por isso, só é claro para mim que seja permitido quando a vida da mãe corre risco. Mas ainda é uma questão sobre a qual tenho de pensar…
O ponto três é daqueles que eu adorava ter escrito mas gosto ainda mais que tenhas escrito e que eu tenha lido. É triste pensar que hoje se pensa assim, de forma tão incoerente, quase sem princípios ou com os princípios errados. Nomeadamente, os princípios da dignidade humana e o da liberdade são totalmente misinterpreted. Não só é violada a igualdade entre a mãe e o filho como entre o pai e a mãe. O filho pode estar no corpo da mãe, mas, como tu disseste, não é parte intrínseca do corpo. Ou seja, o pai tem tanto “poder” sobre a vida do filho como a mãe. E esse “poder” não é ilimitado. Os pais respondem pelos filhos menores mas isso não lhes dá o direito de se considerarem superiores a eles perante a lei nem de os privarem da dignidade, mais concretamente, da vida. E agora que estou a estudar Aristóteles penso muito nesse poder dos pais sobre os filhos. É que dantes as relações familiares eram muito pouco humanas. A descrição do Aristóteles, na sua obra Política, é interessantíssima, indicando as funções de cada um dos membros. E diz ainda que o filho pode ser abortado ou até morto ou abandonado à nascença (e Aristóteles fala de aborto e abandono da mesma forma, não fazendo grande distinção de princípios entre eles). Isto era legítimo. Entretanto evoluímos e começámos a considerar actos como estes desumanos. Agora acusam o Não de ser retrógrado. O Sim é que é retrógrado em medidas humanizantes.

P.S.- A punchline final está sublime.;)

Alexandre Poço disse...

Caro António,

faço minhas as tuas palavras sobre esta questão (mas sem plagiar, obviamente). Porém, vivemos em Democracia e até nova decisão popular é este o veredicto sobre o assunto.

É mau? É.
É insuficiente? É.
É desumano? É.
É apenas "para inglês ver"? É.

Um dia far-se-á justiça e valores como a dignidade humana e o valor intrínseco da vida voltarão a estar por cima em detrimento de falsos moralismos e estratégias demagogas e populistas.